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segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Uma longa viagem*



"Ah, um lugar na janela!", comemorou, apressando-se para que ninguém lhe roubasse o assento privilegiado.
O caminho era longo e havia grandes possibilidades de o ônibus ficar bem cheio de gente. Então era bom garantir que não seria importunada pela multidão que logo ocuparia o corredor. Joyce sentou satisfeita à janela que seria sua durante a próxima hora e sacou a revista que lhe ajudaria a diminuir a sensação de demora. Estava ansiosa, afinal iria encontrar o amor da sua vida.

Não tinha passado muito tempo e um passageiro sentou-se ao seu lado. Ficou na dele, trocando mensagens pelo celular, nada que atrapalhasse sua leitura ou tranqüilidade. Parecia ser como ela, gostava de ficar quieto e introspectivo em coletivos. Tanto que, assim que vagou um lugar sem ninguém ao lado, duas fileiras a frente, ele não hesitou em pular para um dos bancos vazios. Mas estranhamente não escolheu a janela, sentou no corredor.

"Se ele gostava do corredor, porque não continuou onde estava? Será que eu estava incomodando? Bem, só espero que a próxima pessoa a sentar do meu lado seja tão quieta quanto ele. Será que devo mudar para o banco ao lado só por garant...?" O pensamento de Joyce foi interrompido pelo cheiro de álcool que seu novo vizinho exalava.

Abriu mais a janela para que o vento lhe acertasse em cheio as narinas. Já dispersa de sua leitura, começou a temer que o cara quisesse interagir de alguma forma inconveniente. Temia mais ainda que ele vomitasse ao se lado ou, pior, em cima dela. Ficou quieta, fingindo estar concentradíssima na leitura e, de vez em quando, erguia o nariz para o vento.

O homem abaixou a cabeça de olhos fechados, parecia dormir. O que era um problema, pois sua condição vulnerável fazia com que seu corpo balançasse conforme o movimento do ônibus. Joyce ajeitou-se, afastando-o discretamente com o ombro direito.

_ Me avisa quando chegar na Avenida das Américas?, soltou repentinamente o bêbado com um sotaque estranho, como se tivesse sonhado com a avenida que corta a Barra da Tijuca.

_ Claro, respondeu Joyce rapidamente querendo se livrar do bafo forte.

_ Não precisa ter medo de mim.

"Que bêbado perspicaz!", pensou ela como se fosse um xingamento enquanto tentava transparecer tranqüilidade:

_ Tudo bem, não estou com medo.

_ Você não precisa ter medo de mim porque eu tenho esposa e filhos.

_ Tudo bem, não estou com medo, repetiu perguntando-se por que ele não voltava a cochilar.

Agora, ela nem podia ignorá-lo e apontar o nariz ao vento sob risco do tagarela alcoolizado sentir-se ofendido.

_ Eu sou da Angola e estudo Agronomia, revelou o homem.

"Ok, te dou uma chance, pode ser uma boa história, afinal", pensou Joyce.

_ Há quanto tempo você mora aqui?

_ Dezesseis anos. Eu sou pintor. Se quiser pintar sua casa, me chama porque eu não faço uma pintura comum, faço texturas. Com o que você trabalha?

_ Sou publicitária.

_ Onde você estudou?

_ Na UFRJ.

_ No Maracanã?

_ Não, na Praia Vermelha.

Diante da expressão de interrogação, ela completou: _ Na Urca.

_ Ah, eu conheço a Urca, já trabalhei lá.

_ Onde você estuda Agronomia?

_ Na UFRJ.

Joyce desconfiou da informação: _ No Fundão?

_ É.
Olha, você não precisa ter medo de mim porque eu trabalho, tenho esposa e filhos. Essa é minha vida, não te faria nenhum mal. Sabe por quê? Porque eu acho que eu posso precisar da sua amizade um dia...

_ Ahn...

_ Para onde você está indo?

_ Encontrar meu namorado.

_ Que bom que você tem namorado. Você tem filhos?

_ Não.

_ Quer ter filhos um dia?

_ Sim.

_ Quantos? Um, dois, três...?

_ Três, soltou Joyce sem pensar em sua real pretensão.

_ Trêêêêês?!

_ Quantos filhos você tem?

_ Nove.

_ Ahn... Pequenos?

_ O mais velho tem catorze anos.

(silêncio...)

O angolano fica pensativo e Joyce chega a acreditar que a conversa chegara ao fim. Mas, de repente, ele volta os olhos para ela novamente e pergunta, como se fosse a primeira vez:

_ Quantos filhos você quer ter?

_ Três.

“Por via das dúvidas, é melhor manter a mesma resposta”, pensa Joyce.

_ Trêêêêêês?!

Joyce não se contém e solta o primeiro riso daquela conversa.

_ Aaaah, você já não está com medo de mim!, constata o angolano com satisfação. _ Por que você teve medo de mim no início?

_ Em geral, eu ando com medo na rua, confessou Joyce. E justificou: _ A cidade é muito perigosa.

_ É verdade. Mas eu não vou fazer mal a você. Eu quero ser seu amigo. Sabe por quê? Você conhece o mapa Mundi?

_ Sim.

_ Se você reparar a América do Sul e a África se encaixam.

Nessa hora, Joyce tem um pensamento irônico: “Ah, sim, um ótimo motivo para sermos amigos.”

O angolano continua seu raciocínio:
_ Acredita-se que essas partes estavam juntas muitos anos atrás e eu acredito que elas ainda estão em movimento porque antigamente eu demorava oito horas e meia para vir de Angola para cá. Agora, demoro sete horas e meia.

Surpresa, Joyce julga aquela informação realmente interessante.
_ A Angola é violenta?

_ Não mais porque a guerra acabou.

_ Mas tem muito assalto, seqüestro...?

_ Ah, sim, igual aqui!

_ Então, é violenta.

_ Qual é o seu nome?

_ Joyce.

_ O meu é Mathias, fala exibindo a palma da mão direita.

Joyce corresponde educadamente e o aperto de mão dura mais tempo do que ela pretendia.

_ No início, você teve medo de mim, não sei por que e não quero saber, mas você não precisa, tá? Eu não vou te fazer mal, quero ser seu amigo.

Joyce sorri tentando ser simpática e rapidamente vira o nariz para a janela com receio de ficar embriagada pelo cheiro forte daquelas palavras.

_ Você sabe onde estou indo?

Apesar da resposta óbvia, Mathias aguarda escutá-la dos lábios de Joyce.
_ Não. Onde?

_ À casa da minha namoradinha

_ E sua esposa?

_ Nossa separação é certa.

_ Entendo, lamenta Joyce.

_ Não, você não entende. Você soltou a palavra “entendo”, mas você não entendeu.

_ Eu entendi, assegura Joyce.

Mathias dá de ombros desistindo de argumentar.

_ Minha namorada é muito bonita. Ela é de pele branca assim que nem você.

_ Que bom que ela é bonita.

_ Eu não fico com mulher feia.

(silêncio...)

_ Mas isso não é certo porque as pessoas feias também amam, continua.

A peculiar filosofia faz Joyce rir por dentro.

_ Você é bonita, solta ele.

_ Obrigada.

_ Tem gente que é bonita mas se veste mal e tem gente que não é bonita mas se veste bem. Você está bem vestida.

_ Obrigada.

_ Eu estou bem vestido?

Joyce analisa a vestimenta do angolano, como se ela fosse dar uma resposta sincera:

_ Está.

Mathias agradece e sorri largamente comemorando o elogio.

_ Qual é o seu nome?

_ Joyce, responde ela com preguiça de repetição.

Ele mostra a palma da mão novamente e se cumprimentam mais uma vez.

_ Você é brasileira?

_ Sou.

_ Do Rio?

_ Sim.

_ Mentira!

_ Verdade.

_ Mentira.

_ Eu pareço ser de onde?

_ De Minas.

_ Porque eu sou muito branca?

_ Não.

Ele repensa...

_ Se bem que quem fala com estrangeiro ou é carioca ou é baiano.

Joyce tenta encontrar lógica na informação...

_ E se eu quiser te encontrar?, pergunta ele.

_ Como assim?, questiona Joyce para ganhar tempo e não precisar dar informações a um desconhecido bêbado em uma cidade em que ambos concordam ser perigosa.

_ Se eu quiser te ligar e falar “preciso encontrar você”, como eu faço?

Joyce dá de ombros, pressiona os lábios e ergue as sobrancelhas como quem diz “Tenta a sorte de me encontrar por aí.”

_ Eu moro na Praça Seca, na Rua do Sítio, casa do Pequeno. Não precisa ter medo de mim. Onde você mora?

_ Na Freguesia.

_ Eu nunca vou te fazer mal. Meu pai me ensinou: “Não machuque alguém porque o machucado vai doer mais em você”.

_ Bonito.

_ Quantos filhos você quer ter?

_ Três. E meu nome é Joyce.

_ Trêêêêêês?!

Joyce pega mais um ar na janela.

_ Um dia você vai contar de mim para os seus amigos.

_ Vou mesmo.

_ Aqui já é a Avenida das Américas?

_ Sim.

_ Vou descer.

Mais um aperto de mão.

_ Boa sorte e tudo de bom, deseja Joyce com sinceridade.

_ Obrigada.

Mathias salta e acena pela janela. A porta fecha.

_ Joyce suspira aliviada.

O cara sentado no banco da frente logo se vira:
_ Está tudo bem?

_ Sim, obrigada.

_ Eu estava agoniado...



_ Está tudo bem, garante Joyce.

_ Você vai ter uns quinze filhos, né?

Joyce ri.







*Uma viagem inspirada em fatos reais.




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A cidade que nunca dorme


Uma das coisas mais saborosas (literalmente) de Nova York são as tortas de maçã vendidas em qualquer uma das inúmeras confeitarias existentes por lá. Em inglês, o doce leva o sonoro nome de “apple pie”, assim, num crescente, com vários P’s, como uma combinação de notas musicais.

Não haveria nome mais apropriado para o doce da “Big Apple”, a cidade em que se ouve um saxofone em cada esquina. Ou em cada estação de metrô. O que, na prática, dá quase na mesma. Pode-se ir a qualquer lugar dentro de Nova York (e até a alguns fora da cidade) usando o trem. Alugar um carro por lá é estragar a viagem, é se fechar no ar condicionado e deixar de sentir os cheiros que o vento traz. É perder um artista que faz da calçada seu ateliê, é deixar de tocar as pedras de um edifício residencial com entradinha em nível mais baixo que a calçada, é não se encantar com uma flor de cor inusitada.

E é assim, por caminhos pelos quais não se passa correndo, que se decide entrar e uma estação de metrô e, em 20 minutos, atravessa-se Manhattan de uma ponta à outra e, em 40, chega-se até a outro estado, se estivermos falando de um brasileiro-ávido-por-compras-no-exterior que quiser dar um pulinho em Nova Jersey para visitar “Outlet malls”.

Aliás, minha (humilde) dica é para que não se gaste mais que 10% do tempo com compras em uma cidade tão rica culturalmente. Gaste mais dinheiro em peças, museus, show e “tips” para os artistas de rua que em roupas, perfumes e eletrônicos, se o que se busca é enriquecer e não pagar excesso de bagagem.

E se você não estiver satisfeito com os músicos por toda a parte, pode dar uma conferida em um especial (não necessariamente especial enquanto músico), indo a um restaurante com música ao vivo onde o clarinete é tocado por ninguém menos que Woody Allen. E é por causa dele que “o restaurante com música ao vivo” torna-se “um show no qual se pode pedir comida”. Sim, porque, apesar de outros quatro ótimos músicos no palco, ninguém tira os olhos de Mr. Allen, ninguém deixa de dar uma risada a cada trejeito peculiar do cineasta.

E se pegar um dia chuvoso de outono, não se considere sem sorte, é uma ótima oportunidade para passar a tarde no Metropolitan Museum of Art, onde se encontra, em único (e enorme) lugar, algumas daquelas obras de arte que se vê em livros e exposições esporádicas para todos os gostos. Eu mesma, que aprecio arte como leiga, fiquei encantada, há alguns anos, com uma exposição sobre moda e os estereótipos de beleza e, da última vez, deliciei-me com Andy Wharol na mostra “Sixty Artists, Fifty Years”, que reúne obras do próprio Wharol e de artistas influenciados por ele.

Enfim, uma cidade com muitas opções para tudo na qual você só precisa pegar longas filas se estiver muito ansioso para assistir ao novo Atividade Paranormal ou para comprar ingressos para o show do Bruno Mars. Às vezes, é preciso enfrentar uma para ir ao banheiro também, mas aí vem uma boa notícia para as mulheres: todos têm papel. Todos mesmo, incluindo o banheiro público da praia de Coney Island.

Enfim (como eu ia dizendo), com tantas opções, se, depois do jantar, você ainda não tiver night certa no Village, na dúvida, vá para a Times Square, mais quente que os outros pontos de Manhattan. Desconfio que seja pela grande quantidade de luzes e de gente.

Bem... Vá lá, batuque uma música qualquer com o pé, eleja uma confeitaria e peça uma fatia de épolpai.
Ah, e só durma se não tiver outra opção.