"Ah, um lugar na janela!", comemorou, apressando-se para que ninguém lhe roubasse o assento privilegiado.
O caminho era longo e havia grandes
possibilidades de o ônibus ficar bem cheio de gente. Então era bom garantir que
não seria importunada pela multidão que logo ocuparia o corredor. Joyce sentou
satisfeita à janela que seria sua durante a próxima hora e sacou a revista que
lhe ajudaria a diminuir a sensação de demora. Estava ansiosa, afinal iria
encontrar o amor da sua vida.
Não tinha passado muito tempo e um passageiro
sentou-se ao seu lado. Ficou na dele, trocando mensagens pelo celular, nada que
atrapalhasse sua leitura ou tranqüilidade. Parecia ser como ela, gostava de
ficar quieto e introspectivo em coletivos. Tanto que, assim que vagou um lugar
sem ninguém ao lado, duas fileiras a frente, ele não hesitou em pular para um
dos bancos vazios. Mas estranhamente não escolheu a janela, sentou no
corredor.
"Se ele gostava do corredor, porque não
continuou onde estava? Será que eu estava incomodando? Bem, só espero que a
próxima pessoa a sentar do meu lado seja tão quieta quanto ele. Será que devo
mudar para o banco ao lado só por garant...?" O pensamento de Joyce foi
interrompido pelo cheiro de álcool que seu novo vizinho exalava.
Abriu mais a janela para que o vento lhe
acertasse em cheio as narinas. Já dispersa de sua leitura, começou a temer que
o cara quisesse interagir de alguma forma inconveniente. Temia mais ainda que
ele vomitasse ao se lado ou, pior, em cima dela. Ficou quieta, fingindo estar concentradíssima
na leitura e, de vez em quando, erguia o nariz para o vento.
O homem abaixou a cabeça de olhos fechados,
parecia dormir. O que era um problema, pois sua condição vulnerável fazia com
que seu corpo balançasse conforme o movimento do ônibus. Joyce ajeitou-se, afastando-o discretamente
com o ombro direito.
_ Me avisa quando chegar na Avenida das
Américas?, soltou repentinamente o bêbado com um sotaque estranho, como se
tivesse sonhado com a avenida que corta a Barra da Tijuca.
_ Claro,
respondeu Joyce rapidamente querendo se livrar do bafo forte.
_ Não precisa ter medo de mim.
"Que bêbado perspicaz!", pensou ela
como se fosse um xingamento enquanto tentava transparecer tranqüilidade:
_ Tudo bem, não estou com medo.
_ Você não precisa ter medo de mim porque eu
tenho esposa e filhos.
_ Tudo bem, não estou com medo, repetiu
perguntando-se por que ele não voltava a cochilar.
Agora, ela nem podia ignorá-lo e apontar o
nariz ao vento sob risco do tagarela alcoolizado sentir-se ofendido.
_ Eu sou da Angola e estudo Agronomia,
revelou o homem.
"Ok, te dou uma chance, pode ser uma boa
história, afinal", pensou Joyce.
_ Há quanto tempo você mora aqui?
_ Dezesseis anos. Eu sou pintor. Se quiser
pintar sua casa, me chama porque eu não faço uma pintura comum, faço texturas.
Com o que você trabalha?
_ Sou publicitária.
_ Onde você estudou?
_ Na UFRJ.
_ No Maracanã?
_ Não, na Praia Vermelha.
Diante da expressão de interrogação, ela
completou: _ Na Urca.
_ Ah, eu conheço a Urca, já trabalhei lá.
_ Onde você estuda Agronomia?
_ Na UFRJ.
Joyce desconfiou da informação: _ No Fundão?
_ É.
Olha,
você não precisa ter medo de mim porque eu trabalho, tenho esposa e filhos.
Essa é minha vida, não te faria nenhum mal. Sabe por quê? Porque eu acho que eu
posso precisar da sua amizade um dia...
_ Ahn...
_ Para onde você
está indo?
_ Encontrar meu
namorado.
_ Que bom que
você tem namorado. Você tem filhos?
_ Não.
_ Quer ter
filhos um dia?
_ Sim.
_ Quantos? Um,
dois, três...?
_ Três, soltou
Joyce sem pensar em sua real pretensão.
_ Trêêêêês?!
_ Quantos filhos
você tem?
_ Nove.
_ Ahn...
Pequenos?
_ O mais velho
tem catorze anos.
(silêncio...)
O angolano fica
pensativo e Joyce chega a acreditar que a conversa chegara ao fim. Mas, de
repente, ele volta os olhos para ela novamente e pergunta, como se fosse a
primeira vez:
_ Quantos filhos
você quer ter?
_ Três.
“Por via das
dúvidas, é melhor manter a mesma resposta”, pensa Joyce.
_ Trêêêêêês?!
Joyce não se
contém e solta o primeiro riso daquela conversa.
_ Aaaah, você já
não está com medo de mim!, constata o angolano com satisfação. _ Por que você
teve medo de mim no início?
_ Em geral, eu
ando com medo na rua, confessou Joyce. E justificou: _ A cidade é muito
perigosa.
_ É verdade. Mas
eu não vou fazer mal a você. Eu quero ser seu amigo. Sabe por quê? Você conhece
o mapa Mundi?
_ Sim.
_ Se você
reparar a América do Sul e a África se encaixam.
Nessa hora,
Joyce tem um pensamento irônico: “Ah, sim, um ótimo motivo para sermos amigos.”
O angolano
continua seu raciocínio:
_ Acredita-se
que essas partes estavam juntas muitos anos atrás e eu acredito que elas ainda
estão em movimento porque antigamente eu demorava oito horas e meia para vir de
Angola para cá. Agora, demoro sete horas e meia.
Surpresa, Joyce
julga aquela informação realmente interessante.
_ A Angola é
violenta?
_ Não mais
porque a guerra acabou.
_ Mas tem muito
assalto, seqüestro...?
_ Ah, sim, igual
aqui!
_ Então, é
violenta.
_ Qual é o seu
nome?
_ Joyce.
_ O meu é
Mathias, fala exibindo a palma da mão direita.
Joyce
corresponde educadamente e o aperto de mão dura mais tempo do que ela
pretendia.
_ No início,
você teve medo de mim, não sei por que e não quero saber, mas você não precisa,
tá? Eu não vou te fazer mal, quero ser seu amigo.
Joyce sorri
tentando ser simpática e rapidamente vira o nariz para a janela com receio de
ficar embriagada pelo cheiro forte daquelas palavras.
_ Você sabe onde
estou indo?
Apesar da
resposta óbvia, Mathias aguarda escutá-la dos lábios de Joyce.
_ Não. Onde?
_ À casa da
minha namoradinha
_ E sua esposa?
_ Nossa
separação é certa.
_ Entendo,
lamenta Joyce.
_ Não, você não
entende. Você soltou a palavra “entendo”, mas você não entendeu.
_ Eu entendi,
assegura Joyce.
Mathias dá de
ombros desistindo de argumentar.
_ Minha namorada
é muito bonita. Ela é de pele branca assim que nem você.
_ Que bom que
ela é bonita.
_ Eu não fico
com mulher feia.
(silêncio...)
_ Mas isso não é
certo porque as pessoas feias também amam, continua.
A peculiar
filosofia faz Joyce rir por dentro.
_ Você é bonita,
solta ele.
_ Obrigada.
_ Tem gente que
é bonita mas se veste mal e tem gente que não é bonita mas se veste bem. Você
está bem vestida.
_ Obrigada.
_ Eu estou bem
vestido?
Joyce analisa a
vestimenta do angolano, como se ela fosse dar uma resposta sincera:
_ Está.
Mathias agradece
e sorri largamente comemorando o elogio.
_ Qual é o seu
nome?
_ Joyce,
responde ela com preguiça de repetição.
Ele mostra a
palma da mão novamente e se cumprimentam mais uma vez.
_ Você é
brasileira?
_ Sou.
_ Do Rio?
_ Sim.
_ Mentira!
_ Verdade.
_ Mentira.
_ Eu pareço ser
de onde?
_ De Minas.
_ Porque eu sou
muito branca?
_ Não.
Ele repensa...
_ Se bem que
quem fala com estrangeiro ou é carioca ou é baiano.
Joyce tenta
encontrar lógica na informação...
_ E se eu quiser
te encontrar?, pergunta ele.
_ Como assim?,
questiona Joyce para ganhar tempo e não precisar dar informações a um
desconhecido bêbado em uma cidade em que ambos concordam ser perigosa.
_ Se eu quiser
te ligar e falar “preciso encontrar você”, como eu faço?
Joyce dá de ombros,
pressiona os lábios e ergue as sobrancelhas como quem diz “Tenta a sorte de me
encontrar por aí.”
_ Eu moro na
Praça Seca, na Rua do Sítio, casa do Pequeno. Não precisa ter medo de mim. Onde
você mora?
_ Na Freguesia.
_ Eu nunca vou
te fazer mal. Meu pai me ensinou: “Não machuque alguém porque o machucado vai
doer mais em você”.
_ Bonito.
_ Quantos filhos
você quer ter?
_ Três. E meu
nome é Joyce.
_ Trêêêêêês?!
Joyce pega mais
um ar na janela.
_ Um dia você
vai contar de mim para os seus amigos.
_ Vou mesmo.
_ Aqui já é a
Avenida das Américas?
_ Sim.
_ Vou descer.
Mais um aperto
de mão.
_ Boa sorte e
tudo de bom, deseja Joyce com sinceridade.
_ Obrigada.
Mathias salta e
acena pela janela. A porta fecha.
_ Joyce suspira
aliviada.
O cara sentado
no banco da frente logo se vira:
_ Está tudo bem?
_ Sim, obrigada.
_ Eu estava
agoniado...
_ Está tudo bem, garante Joyce.
_ Você vai ter
uns quinze filhos, né?
*Uma viagem inspirada em fatos reais.